quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cicatrizes

Ana Carolina Seara

Ri das cicatrizes quem jamais foi ferido” (William Shakespeare). E quem já não foi ferido na vida? Os ferimentos podem ser de vários tipos: existem aqueles que deixam marcas na pele e os que deixam sua marca em um lugar que não é visível aos olhos, sentidos na “carne” (no “lugar” destinado aos sentimentos, que alguns arriscariam chamar de coração).

Dos ferimentos que marcaram seu corpo, tombos de criança, acidentes e cirurgias quem cuidou de você foi alguma pessoa próxima e/ou um médico. Mas, quem cuidou dos seus ferimentos não visíveis aos olhos, aqueles que marcaram seus sentimentos e deixaram sua presença na forma como você vivencia suas emoções na atualidade? Você teve por perto algum cuidador (pai, mãe, irmãos, parentes ou amigos próximos) que te amparasse nos momentos em que foi ferido profundamente? Alguém que pudesse ajudar a limpar a ferida, que estivesse do seu lado quando a dor parecia insuportável e que te ensinasse a cuidar desses “machucados”?

Quando éramos crianças, éramos dependentes dos adultos para muitas coisas. E aprendemos com eles a fazer coisas que depois de alguns anos iríamos fazer sozinhos e sem ajuda: aprendemos a nos alimentar, a andar, a eliminar os resíduos do corpo nos locais adequados, a limpar nosso corpo, a vestir nossa roupa, hábitos de higiene, aprendemos também a ler e escrever e a pensar. E, fatalmente, aprendemos também a como lidar com os nossos sentimentos. Nem todas as lições foram aprendidas de maneira direta, afinal aprendemos muito mais por observação e vivência do que através de orientações e “conselhos”. É provável que nem todos os nossos “professores” fossem experts naquilo que tentaram nos ensinar, ensinaram o que puderam, do modo que deram conta. E é bem possível também que não tenhamos aprendido tudo de que necessitávamos, pulamos algumas lições, prestamos muita atenção em outras, “matamos” algumas aulas, mas o necessário para a nossa sobrevivência foi aprendido, afinal estamos vivos.

A morte de um ente querido, o término indesejado de um relacionamento, o fracasso em uma avaliação importante, entre outras coisas, são algumas das situações que podem gerar feridas emocionais. Mas também podem fazer antigas feridas mal cuidadas virem à tona ... e, nesse caso, a dor acaba sendo muito maior, um tanto quanto desproporcional. Uma perda na atualidade pode fazer com que todas as dores latentes de ferimentos antigos não curados (e relacionadas a ela) venham para a superfície. E o sentimento gerado por esse tipo de experiência pode ser devastador.

Dentro dos conhecimentos médicos, sabe-se que a dor é um sintoma muito importante, pois é o sinalizador de que algo não vai bem com o nosso corpo e, é preciso descobrir quais os motivos de sua aparição: investiga-se sua origem e, junto dos analgésicos para aliviar o sintoma, procura-se tratar a causa do problema. O olhar de um Psicoterapeuta sobre as dores emocionais é semelhante, nenhum sintoma surge sem um fundo, ou seja, um problema vivenciado hoje normalmente é apenas a ponta do icerberg, ele pode estar relacionado a vivências e aprendizagens anteriores. Afinal a forma como cada pessoa lida com suas dores foi desenvolvida ao longo de sua vida.

Você pode ter se esquecido, mas uma fala muito comum entre os adultos, quando uma criança se machuca, é “não foi nada”, “deixa eu dar um beijo que passa”, “pronto, nem doeu”. Até aí nenhum problema, pois a intenção do adulto pode ser apenas a de acalmar aquela criança aos “prantos” e fazê-la parar de chorar. O problema existe quando crescemos e continuamos usando os mesmos métodos, quando ignoramos dores e ferimentos e não damos a eles a atenção necessária para que curem. Ou, no extremo oposto, quando existe um “apego” a dores e a pessoa está sempre se vitimizando, sempre se machucando, pois, com isso, consegue ter algum tipo de atenção que, caso estivesse bem, não teria. Lógico que normalmente essa forma de ser não é deliberada, ou seja, isso não é mais uma escolha consciente, mas um hábito adquirido, que se repete, assim como dirigir ou andar de bicicleta, você não pensa mais para fazer, apenas faz. Repete algo que talvez um dia tenha dado certo. É importante ressaltar que tais exemplos não têm a intenção de serem reducionistas, como se houvesse uma causa e efeito, são apenas uma ficção sobre um ajustamento que todos nós fizemos um dia (e ainda fazemos) diante do que vivemos. Cada pessoa tem uma história única e seria muito leviano afirmar que uma fala teria o mesmo impacto para todas as pessoas e repercutiria da mesma maneira.

Em vista disso, vale lembrar que aos médicos cabem os cuidados e conselhos sobre os ferimentos do corpo, e a nós Psicólogos cabe a parte que se refere às feridas que atingiram os sentimentos e emoções. Fomos, somos e estaremos sempre sujeitos a nos ferirmos, o que pode mudar ao longo do tempo é a nossa capacidade de lidar com esses machucados, ajudando na cicatrização, encontrando o “remédio” mais adequado, tendo paciência com o tempo necessário para cicatrizar e aprendendo a aceitar e encarar as cicatrizes como marcas do nosso crescimento. Se os cuidados forem adequados, com o tempo elas fecham e não doem mais, ficarão apenas como tatuagens, inscrições de uma história. Mas, se elas não forem bem cuidadas, poderão permanecer sempre como feridas abertas que, ao mínimo toque, geram uma dor insuportável. 

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